Erico Stickel na noite de autógrafos de seu livro “Uma Pequena Biblioteca Particular – Subsídios para o Estudo da Iconografia no Brasil”, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional em 29 de março de 2004.
O livro.
Meu pai, Erico João Siriuba Stickel, foi antes de tudo um bibliófilo, um amante da cultura e dos livros ou, como ele mesmo gostava de se referir, um “bicho de livro”. Ele era daquelas pessoas que invariavelmente eram duas, ele e o livro que carregava.
Me lembro, quando era pequeno, de acompanhá-lo no combate às pragas que ameaçavam sua biblioteca. Com um canivete, ele alargava os túneis que atravessavam páginas, capítulos, séculos, sem respeitar margens, parágrafos ou pontuação, e extraía das profundezas dos volumes as criaturas que insistiam em arruinar o seu tesouro.
Nossa casa, na Rua dos Franceses, em São Paulo, era tomada por estantes de livros na sala, no escritório, nos corredores, no porão, onde houvesse um espaço livre. Em lugar de destaque, ficava a Brockhaus Enzyklopädie, que durante décadas fez o papel de Google ao lado da Encyclopedia Britannica, de dicionários diversos e de muitos outros livros de referência e de arte. A história era a mesma em seu escritório. Sede da Fundação Stickel, a casinha de vila na Rua Bela Cintra era também abarrotada de livros e arquivos.
A casa inteira tomada pelos livros…
Através dos anos, sua biblioteca foi se especializando em autores e estudiosos da iconografia brasileira, dando corpo ao que se transformaria em sua única obra, Uma Pequena Biblioteca Particular – Subsídios para o Estudo da Iconografia no Brasil. Publicado pela Edusp, em 2004, o livro levou por volta de 30 anos para ser concluído e minha mãe, Martha, pode-se dizer, é coautora, ao menos na permanente companhia na obsessiva leitura e compilação de fichas, referências, notas etc. em um quarto no piso superior da casa onde morávamos na Rua dos Franceses, com janelas abertas para o jardim e o vale da Rua Almirante Marques Leão.
A intenção de meu pai era escrever um dicionário bibliográfico da iconografia brasileira, à semelhança de autores como Rubens Borba de Morais ou Rosemarie Horch, mas baseado em sua própria biblioteca.
No início era apenas o fichamento dos livros e publicações que ele achava interessantes. As fichas em cartolina eram preenchidas à mão com caneta tinteiro e com o tempo foram crescendo em número e complexidade.
As coisas começaram a mudar de figura em 1995, ano iniciado com o nascimento do meu caçula Arthur. Paralelamente ao trabalho como professor de desenho, me dividia entre a edição de meu livro aqui tem coisa, com a colaboração de meu pai, e a gestão de seu patrimônio. Com a parceria diária, consegui convencê-lo a iniciar a sistematização do vasto material de sua pesquisa, o que seria feito com a compra de um computador e a contratação da pesquisadora Francis Melvin Lee.
Francis com minha mãe, e o local de trabalho.
Foram muitos anos de uma minuciosa e cuidadosa rotina, da digitação do material manuscrito às revisões e catalogação final. Francis se dedicou também a organizar e catalogar em pastas um tesouro secreto de meu pai, escondido de todos em várias mapotecas. Eram obras em papel, aquarelas, desenhos e gravuras relacionadas à paisagem, à gente e aos costumes brasileiros, retratados por viajantes estrangeiros, ao final incorporados ao projeto.
Em 2002, tendo praticamente concluído sua pesquisa, meu pai, com a solidariedade de minha mãe, doou ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo os cerca de quatro mil volumes de sua “Pequena Biblioteca Particular”. Incorporada ao acervo do IEB como a “Biblioteca Martha e Erico Stickel”, ele a definiria – em texto introdutório à edição que viria pela frente – como uma coleção desenvolvida “em torno da representação artística que tivesse basicamente por alvo a paisagem, a cidade e sua arquitetura, o retrato, a fauna e a flora em seu ambiente natural, as festas populares e sacras, o patrimônio artístico e histórico nacional, imagens produzidas ao longo dos tempos por centenas de ‘viajantes’ e pintores de todos os tipos, aventureiros, fotógrafos e outros […]”.
Como resultado, Uma Pequena Biblioteca Particular se tornou um livro de peso, com cerca de 750 páginas e inúmeras reproduções a cores de Romulo Fialdini. Sem dúvida uma importante obra de referência para os estudiosos do assunto, gosto de folheá-lo também como um tributo a um desses dedicados autores bissextos, com o trabalho de uma vida indispensável à compreensão do mundo como o conhecemos – meu pai.
O amigo Emanoel Araújo assim o definiria em prefácio ao volume: “Erico Stickel poderia ser um colecionador frio, desses que costumam entesourar maravilhas que amealham durante toda uma vida só para sua satisfação pessoal. O resultado de suas visitas a exposições, livrarias e eventos culturais poderia permanecer como atividade privada e anônima como talvez se esperasse de um espartano como ele, pesquisador silencioso e sequioso de seu tempo. Entretanto, seguramente Erico Stickel desde muito cedo alimentou de maneira quase religiosa esta ideia que ora se materializa em forma de livro. Dar a público o resultado de suas constantes e laboriosas incursões pela cultura de nosso país”.
No início de 2003, com 82 anos de idade, meu pai passou a reclamar com frequência de um pigarro que o incomodava já havia algum tempo. Após visitas a diversos médicos e muitos exames depois, ele foi diagnosticado com um câncer no pâncreas. A notícia devastou a família, pois era de conhecimento comum que este diagnóstico equivalia a uma sentença de morte. Na sequência, os médicos decidiram que era necessária uma cirurgia exploratória.
Em recuperação após a cirurgia, com minha mãe e minha irmã Ana Maria.
Internado no Hospital Alemão Osvaldo Cruz no início de março, a cirurgia evidenciou que um tumor pressionava o esôfago, daí o pigarro. A equipe decidiu não tocá-lo pelo risco de provocar uma hemorragia e/ou metástase, optando por intervenções no entorno para aliviar o stress no esôfago.
A comemoração do aniversário de 83 anos.
Após a recuperação no hospital, meu pai voltou para casa a tempo de comemorar em 3 de abril, e muito bem disposto, o seu 83º aniversário. Veio então a quimioterapia, que no início provocou reações muito agressivas, mas tornou-se suportável após ajustes na dosagem da medicação.
Pouco a pouco, a vida foi voltando ao normal. Tão normal quanto possível para alguém que recebeu uma sentença de morte. Ocorre que meu pai era um ser agnóstico e sempre se comportou como tal, as questões espirituais não faziam parte de seu universo. Conhecendo este seu lado, aproveitei um dia em que fomos passear no Parque Trianon, um dos locais onde ele gostava de caminhar, e pragmaticamente desferi a pergunta:
– Então, pai, o que você quer fazer, quais são as tuas prioridades?
E ele, sem titubear: – Quero fazer o livro.
– Ok, pai, vamos fazer o livro!
De volta ao seu escritório, na Rua dos Franceses, conversei com a Francis, sua fiel auxiliar, e pedi a ela uma impressão do volume em edição. Levei a grossa encadernação ao professor Plinio Martins Filho, da Editora da Universidade de São Paulo, e contei a ele a história.
– Mas já está pronto? – ele perguntou, impressionado.
– Sim, Plinio, está pronto! Falta apenas revisão e a edição de arte.
– Vamos fazer!
E assim a obra de uma vida inteira entrou rapidamente na reta final, com meu pai animadíssimo com o interesse da Edusp em seu livro.
Mais ou menos nesta época, fui a uma palestra de Aldaiza Sposati, então secretária de Assistência Social da Prefeita Marta Suplicy, e lá conheci Agnes Ezabella. Foi ela quem me alertou que o novo Código Civil passou a permitir a penalização de fundações que não cumprissem sua missão, exatamente o caso da Fundação Stickel, instituída pelos meus pais em 1954 e paralisada havia 30 anos.
Levei a questão a um almoço de família, com a presença de meus pais e meus irmãos, fiz a explanação do caso e perguntei o que cada um gostaria de fazer a respeito. Meu pai disse que estava no fim da vida e não tinha mais interesse no assunto. Quando minha mãe e meus irmãos também não se interessaram, eu então, tomado por desconhecida coragem, declarei:
– Eu cuidarei da Fundação, contanto que ela tenha como missão a arte e a cultura!
Todos concordaram. E assim se iniciou a nova fase da Fundação Stickel, sob o meu comando.
Terminada a primeira bateria da quimioterapia, como meu pai se sentisse muito bem, planos de viagem foram feitos, pois viajar era uma de suas grandes paixões. Em um primeiro ensaio para ver se aguentaria ir para a Europa, ele e minha mãe foram a Buenos Aires em julho daquele mesmo ano. Aprovado no teste, em outubro viajaram para a Espanha, onde visitaram minha filha Fernanda, que estudava em Barcelona, e para a Itália, a Roma e Positano.
Ana Maria, Joana, Erico, Martha, Antonio no Txai.
Itacaré, BA
Para comemorar o Réveillon de 2004, meu pai convidou toda a família para o Txai Resort, em Itacaré na Bahia. De volta a São Paulo, ele e minha mãe comemoraram, em 6 de janeiro, seu aniversário de 57 anos de casamento. Uma verdadeira bênção!
Noite de autógrafos! O coroamento de 30 anos de trabalho!
Um ano depois da cirurgia, aconteceria o grande dia. Na segunda-feira, 29 de março de 2004, às 19h, iniciou-se a noite de autógrafos de Uma Pequena Biblioteca Particular – Subsídios para o Estudo da Iconografia no Brasil, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Posso dizer com certeza que foi a ocasião em que vi meu pai mais alegre, realizado, feliz, sorridente, na companhia da família, de dezenas de amigos, seus colegas bibliófilos e “bichos de livro” em geral.
Ele flutuava sobre o solo!
A vida seguiu seu rumo. Em maio, meu pai me presenteou com o lindo Patek Phillippe de bolso, de ouro, que foi do meu avô Arthur Stickel. Pouco depois, ele e minha mãe embarcaram para a Europa, desta vez para Praga, na República Checa, de onde seguiram de navio a Berlim, na Alemanha, e finalmente a Paris, na França.
Em Campos do Jordão, na mesa Sandra, minha mãe, Antonio e Joaninha.
As leituras e o jogo de xadrez.
Em julho, na casa de Campos do Jordão, jogou xadrez com meu filho Arthur. Em setembro, depois de cerca de 30 sessões, a quimioterapia foi suspensa. No início de outubro, os médicos liberaram meu pai para mais uma viagem.
No dia 13 daquele mês, o novo Estatuto da Fundação Stickel foi assinado, oficializando a minha gestão. Em seguida, ele e minha mãe embarcaram para mais uma viagem, outra vez à Itália, rumo a Veneza, Positano e Roma. Mas não seria uma viagem como as outras.
Acometido de fortes dores em Roma, meu pai consultou o médico do hotel. Ao saber de seu histórico, recomendou Buscopan e a volta imediata ao Brasil. A viagem, graças ao poderoso analgésico transcorreu em paz, já em casa em São Paulo meus pais jantaram e assistiram a um filme de Charlie Chaplin. Na manhã seguinte, dia 4 de novembro, meu pai não acordou bem, ao chegar na casa encontrei-o dobrado com dores e levei-o imediatamente ao Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
No dia 7 de novembro, ao levar meu filho Arthur, então com 9 anos de idade, para visitar o avô no hospital, travamos a seguinte conversa no carro:
– Papi, o que é que o vovô tem?
– Um tumor no pâncreas.
– O que é pâncreas?
– É um órgão que fica mais ou menos embaixo do estômago, no começo do intestino.
– Ele pode morrer disso?
– Pode, mas ninguém sabe quando – fez-se um longo silêncio.
– Papi – disse ele, chorando. – Estou muito triste que o vovô vai morrer.
– Não chora, Arthur. Estamos todos tristes, mas a gente tem que ser forte e chegar lá legal para dar um beijo no vovô, dar uma força para a vovó. Estamos torcendo para ele sair do hospital logo.
– É, mas eu estou muito triste ¬– ele continuou chorando.
– Arthur… – disse ao chegar no hospital, também quase chorando. – Deixa eu te explicar uma coisa. O vovô não consegue comer pela boca, então eles colocaram uma sonda nele – expliquei o que era a sonda – para ele poder se alimentar e ficar mais forte.
– Mas ele sente o gosto?
– Não, a comida, que é uma papinha líquida, vai direto para o intestino.
– Mas ele não fica com fome?
– Não, e também não sente dor nenhuma porque os médicos estão tratando muito bem dele.
Chegando ao quarto, meu pai dormia de boca aberta na cadeira. Arthur cumprimentou a tia e recomeçou a chorar. Deitado no colo da avó, conversaram um pouco até que ele se acalmasse. Passado um tempo, o avô acordou. Arthur deu um beijo no avô. Conversaram. Assistimos todos a um programa sobre tubarões no canal National Geographic.
Na saída, Arthur já não chorava mais:
– Papi, eu quero vir visitar o vovô todos os dias.
Em 12 dias de internação, os médicos controlaram a obstrução intestinal e estabilizaram meu pai. Explicando que a doença chegara ao estágio terminal, pediram à família uma decisão sobre como prosseguir. Ele escolheu ficar em casa enquanto as condições fossem favoráveis, concordando que, se as coisas se complicassem, seria sedado e voltaria ao hospital. No dia 15 de novembro ele voltou para casa.
Um mês depois, na quinta-feira, 16 de dezembro, a família estava reunida ao final da tarde ao lado do meu pai, que sofria muito, com dificuldade de se alimentar e mesmo de beber água. Mesmo sem muita clareza, ele nos comunicou que não aguentava mais e queria ser sedado, para minha mãe ele confidenciou:
– Eu quero atravessar o rio, quero ir para a outra margem.
Por volta das 22h, tendo ao seu lado minha mãe, meu irmão Neco, meu filho Antonio e eu, meu pai colocou os sedativos na palma da mão e olhou-os longamente, em silêncio. Em seguida, ainda em silêncio, tomou os remédios. Na manhã seguinte, 17 de dezembro, a ambulância o levou de volta, já inconsciente, para o Hospital Alemão Osvaldo Cruz.
Na noite de 23 de dezembro, minha prima Bel Cesar foi visitá-lo acompanhada do filho, o Lama Michel Rinpoche. Com 12 anos de idade, Michel deixou a família e foi estudar budismo tibetano na Índia, se transformando em monge aos 23 anos de idade. A visita foi muito boa, calma. Lama Michel fez uma longa oração pedindo a abertura de caminhos para a alma do meu pai se elevar e atravessar mais tranquilamente o “bardo” – a fronteira entre a vida e a morte, descrita com minúcias no budismo.
No dia 25, a família toda se reuniu no hospital. Meu pai, totalmente sedado, precisou ser movimentado na cama e eu ajudei o enfermeiro. Foi quando vi as escaras… Muito triste.
Me impressionou também o quanto ele ainda era um homem grande, apesar da magreza. Ao final da tarde, exausto, me despedi de todos e fui para casa. Por volta das 21h, o telefone tocou. Meu pai tinha acabado de falecer no dia de Natal de 2004.
E flutuou pela última vez.
Revisão do texto: Tato Coutinho