Meu amigo Abbondio chamou hoje minha atenção para este texto de Monteiro Lobato (1882-1948) escrito há quase um século atrás.
O Brasil pouco mudou, e nada indica que mudará, infelizmente…
Uma das maiores cargas tributárias do planeta, e serviços públicos de quinta categoria parece ser a sina dos brasileiros… Leia:
NOVO GULLIVER
Há lembranças da meninice que jamais se apagam do cérebro
adulto, mesmo quando esse receptador de impressões não consegue,
por fraqueza senil, reter as da véspera. Lembro-me de um cromo de
vivas cores, visto aos cinco anos, reclame da linha de coser Coat’s e
não me lembro dos desenhos alegóricos a Cristo publicados nos jornais
na última sexta-feira santa. Representava esse cromo um gigante
estirado à borda do mar e enleado de mil fios de linha Coat’s; em redor
formigava a legião dos pigmeus amarradores. De mãos à cintura, muito
contentezinhos, confundiam a imobilidade do gigante, conseqüência do
bom sono que dormia, com a imobilidade da mosca enleada por mil
voltas da teia de aranha.
Mais tarde, quando chegou o belo tempo dos livros de Grimn,
Andersen, Ségur e outros maravilhadores da imaginação infantil travei
conhecimento com Jonathan Swift e tive a explicação do meu cromo
de Coat. Representava Gulliver no país de Lilipute, amarrado durante o
sono de mil cordas liliputianas. Mas Gulliver acordou, estirou os
músculos e com um simples espreguiçamento rompeu, com grande
assombro dos locais, toda a amarrilhoca que o prendia.
Quem trepa a um Corcovado imaginário e de lá procura ver em
conjunto o Brasil, espanta-se da sua atitude. É um gigante deitado e
amarrado. Mas não dorme; ofega com a respiração opressa e faz
descoordenados movimentos convulsivos para romper o cordame
enleador.
O Gulliver sul-americano principiou a ser amarrado pelos
portugueses, quando Portugal descobriu que em suas veias circulava
ouro, o sangue amarelo; e desd’aí até hoje os homens do cipó, vulgo
homens de governo, outra coisa não fizeram, federal, estadual,
municipalmente, senão dobrar cipós, cordas e fios de arame sobre seus
membros para que, a salvo de pontapés, possam sugá-lo com as suas
trombinhas de percevejo.
Portugal só organizou uma coisa no Brasil-colônia: o Fisco, isto é,
o sistema de cordas que amarram para que a tromba percevejante
sugue sem embaraços. Quem lê as cartas régias e mais literatura
metropolitana enche-se de assombro diante do maquiávelico engenho
luso na criação de cordas. Cordas trançadas de dois, de três, de quatro,
de dez; cordas de cânhamo, de crina, de tucum, de tripa; cordas
estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e cordas de enforcar.
E assim foi até que um português de gênio impulsivo se condoeu
da triste sorte do gigante e cortou o cordão umbilical que o prendia à
Metrópole, corda mestra, corda mãe de toda a linda coleção de cordas
fiscais secundárias. E o gigante respirou e viveu feliz, sobretudo no
meio século de “compreensão” que o magnânimo filho do primeiro
Pedro houve por bem outorgar-lhe.
Mas não há felicidade que dure mais de meio século. Uns
bacharéis formados pela universidade da Lua e uns generais tentados
pela serpente da traição implicaram-se com a velhice do príncipe
magnânimo, acusaram-no de saber quatorze línguas, de assistir a
exames de meninos, de boicotar com um célebre lápis azul os maus
juízes, em vez de fazer as coisas interessantes que, quatrienalmente
postos no lugar do velho sábio, eles, bacharéis e generais, fariam. E
deportaram-no; meteram-no a bordo dum mau navio e:
— Vai ninar os netos de Victor Hugo. Tu não entendes de lidar
com o gigante.
O bom velho partiu e os bacharéis e generais, a olharem-se uns
para outros, sorridentes e gozosos, tomaram conta da casa.
Não diremos aqui das conseqüências inúmeras da mudança; basta
que as sintamos todos os dias como o suplício da gota d’água; diremos
somente da coisa capital que a república fez, faz e continuará a fazer.
Estomagada com a liberdade de movimentos do bom gigante, resolveu
amarrá-lo de novo. Foi às cartas régias da Metrópole e ressuscitou uma
a uma todas as cordas e cipós fiscais rompidos pelos Pedros;
recompô-las e começou a enlear pachorrentamente o pobre Gulliver.
Amarra os braços, amarra as pernas, amarra as mãos; amarra,
amordaça a boca para que não grite — e foi-se a Constituição; amarra,
venda os olhos para que não veja — e lá se foi a imprensa.
Sobre o corpo de Gulliver desceram todos os arrochos. Não
bastaram os cipós e cordas de invenção lusa; importaram-se cabos de
aço, torniquetes complicadíssimos, borzeguins medievais, remodelados
pela engenhosidade moderna. O Fisco tornou-se o objetivo supremo da
república, a meta de todas as suas altas cogitações. Anualmente se
reúnem, durante meses, centenas de técnicos cuja função é uma só:
inventar novas torturas fiscais, novos aparelhos de sarjar as carnes e
extorquir sangue à vítima.
Gulliver estertora. Todas as suas forças emprega-as em
defender-se das cordas e ventosas que o Congresso torce e engenha. O
Santo Ofício virou um marquês de Sade repartido em bancadas; não se
contenta em tirar sangue, há que tirá-lo da maneira mais dolorosa, da
maneira mais incômoda, da maneira mais lesiva ao organismo do bom
gigante. A invenção do novo borzeguim — imposto da renda, excede a
tudo quanto saiu da cabeça dos inquisidores: a vítima ignora o que tem
de pagar e se não paga com exatidão incide em pena de confisco! E se
em desespero de causa pede ao Fisco que lhe explique o mistério, que
lhe dê a chave vertical e horizontal do quebra-cabeças, o marquês de
Sade sorri e responde, diagonalmente:
— Pague com cheque cruzado, e explica com grande ironia de
detalhes como se toma de uma régua, duma pena molhada em boa tinta
e como se cruza um cheque.
Não há criatura neste país que não confesse um desânimo infinito.
As energias do homem que trabalha e produz despendem-se por três
quartos na luta contra a escolástica e o sadismo da cipoeira fiscal;
sobra-lhe uma pequena parte para dedicar à sua indústria. Até esforço
muscular dos dedos o sadismo do fisco lhe rouba. Pela manhã, ao
acender o primeiro cigarro, tem que gastar o esforço de duas unhadas
para romper o selo com que o fisco tranca as caixas de fósforos e os
maços de cigarro.
Este engenhoso sistema de tortura tem em vista uma coisa só:
permitir que sobre o corpo do gigante a vermina duma parasitalha
infinita engorde em dolce far niente, como o carrapato engorda no
couro do boi pesteado.
Vermina ininteligente! Consultasse ela os carrapatos e receberia
deles um conselho salutar:
— É perigoso levar a sucção a grau extremo; morre o boi, e com
ele a parasitalha.
Será que nem o instinto da conservação própria consiga meter um
raio de inteligência nos miolos do triatoma megista?
Na Antevéspera
Reações Mentais dum Ingênuo
Monteiro Lobato
Companhia Editora Nacional
São Paulo
1933