aqui no aqui tem coisa encontram-se
coisas, coisas, coisas...
...desde janeiro de 2003

são paulo acorda

No meio da bruma São Paulo acorda, e nada melhor para começar a semana do que esta pérola:

ACORRENTADOS de Paulo Mendes Campos, do livro “O Anjo Bêbado”, Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1969.

Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

é isso, por fernando stickel [ 10:46 ]

6 comentários

Luciana

março 31st, 2003 at 16:14

Não coleciono selos para o filho do amigo, nem sou capaz de segurar uma lagartixa. Mas se tem uma coisa que adoro fazer é procurar na cidade os traços da cidade que passou. Belo texto, linda foto.

f. stickel

março 31st, 2003 at 20:59

Luciana, procurar na cidade os traços da cidade que passou eh o que mais tento fazer, sem muito sucesso.

Luciana

abril 1st, 2003 at 17:23

É, Fernando, não é nada fácil. É incrível a velocidade das mudanças, que apagam todos os vestígios da cidade anterior. O que será de São Paulo daqui a 50 anos?

Mariângela Bertone

abril 3rd, 2003 at 15:08

Fernando,me perdoe pela falta de tempo…Não poderia deixar de dizer umas poucas palavras pelo maravilhoso texto que escolheu,fiquei emocionada com tamanha ternura e como é bom ter como amigo a pessoa sensível que é.Um grande beijo.

Carminha

abril 9th, 2003 at 13:18

Stickel, você tem esse livro?

patricia pedrazza

outubro 12th, 2005 at 16:02

fer vc e´uma pessoa muito sensivel parabens pelas suas escolhas e descobertas

Deixe seu comentário