Lancei meu livro de fotografias “Vila Olímpia” em 20 Maio 2006, simultâneamente à inauguração da exposição de mesmo nome, com curadoria de Diógenes Moura, na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
O livro, editado pela Editora Terceiro Nome, contou com o texto de Diógenes, a seguir:
Ruas como telas
Diógenes Moura
Curador de Fotografia
Pinacoteca do Estado de São Paulo
Numa imagem assinalada por uma geometria simples, um recorte negro interrompe o olhar para quase criar um terceiro plano na medida em que uma esfera de vidro propõe ao espectador descobrir: que tubo azulado é aquele que ali está? O que se passa por trás desse primeiro plano? Quais as referências dessa quase-abstração? O que se esconde num anúncio cujo ponto de fuga é quase um segredo? A resposta está, ou estava, num bairro paulistano sem muita personalidade chamado Vila Olímpia. Está na série que o fotógrafo e artista plástico Fernando Stickel vem descobrindo nas ruas e recantos daquele mesmo bairro desde 2003. Estava porque a cidade, seu corpo, seus músculos, adormece com uma cor e no dia seguinte sua vida cotidiana já lhe trocou as roupas, as dores, os sons, o gozo, os dias, as noites, as palavras. A fotografia não estará mais ali. O recorte, o recanto, o tombo daquela “outra” imagem, será parte do passado.
Ao contrário da “destruição” visual imposta pelos grafites – com sua ira de torcida de futebol organizada -, onde qualquer superfície limpa é afeto para ser imediatamente poluída (costuma-se falar que é a arte dos sem vozes), as imagens de Stickel praticamente nos remete a uma cidade perfeita. Límpida, o que São Paulo não consegue ser; harmonizada em suas cores, muito menos; deliciosa de olhar em seu devaneio geométrico, tampouco. Stickel criou uma série em muitos momentos com uma apuradíssima fatura pictórica, o que leva sua fotografia para a ponta de um bisturi que perscruta os devaneios da própria cidade. São imagens do que seria ideal, produzidas em fases que se completam dentro da simplicidade de detalhes comuns, imperceptíveis a olho nu: um corte de luz solar por trás de um tonel cria um drama onde se pode escutar barulho em volta; uma lanterna interrompendo novamente o negro de um muro qualquer se transforma num minuto de silêncio japonês; uma pin-up fragmentada entre luz e sombra, com seu corpo americanizado, é capaz de interromper o passo, para ser notada: aquela mulher transforma-se em transeunte, pulsa, vive com seus poros de plástico.
A cidade de Stickel tem seu mapa geográfico situado entre imagem e palavra, raciocínio e construção. Um filme, uma sessão particular: penumbra, urbis e tempo, que, em sua explosão luminosa, ultrapassa a expectativa do dia-a-dia e imprime São Paulo como metáfora e memória.
O livro tem também um texto escrito por mim, a seguir:
olhar que vê
Fernando Stickel
Diz a lenda que Ezra Pound, próximo de seus últimos dias e após ter permanecido em absoluto silêncio durante anos, ao ser procurado para uma entrevista e permanecer mais uma vez em profundo mutismo, concordou, após muita insistência do entrevistador em proferir uma única palavra, que considerasse significativa como mensagem:
CURIOSITY
Sempre gostei de fotografar e o faço desde cedo: comecei na adolescência, com uma câmera 6 x 6, que ganhei do meu avô Arthur; em seguida passei a usar uma Pentax Spotmatic 35 mm e depois várias outras ao longo dos anos. Quando conheci o trabalho de Diane Arbus e de Lee Friedlander (só para citar dois mestres), no início dos anos 1970, tive uma certeza: aí tem coisa!
Desenho, pinto, faço colagens, fotografo e escrevo desde pequeno, e meu principal instrumento de trabalho é o olhar – o olhar que foi sendo treinado para descobrir coisas bonitas, excitantes, nos lugares mais banais e à primeira vista desinteressantes; o olhar curioso, que de tanto observar, e observar cada vez com mais paixão e critério, me permitiu desenvolver uma ferramenta poderosa: o olhar que vê, fundamental para descobrir o que não se mostra à primeira vista e sem o qual não existe expressão artística.
Adicione-se a esse “olhar que vê” a minha obsessão em caminhar pela Vila Olímpia, bairro onde moro e trabalho há vinte anos. Quando me mudei para lá, esse bairro de São Paulo, delimitado pelas avenidas Santo Amaro, dos Bandeirantes, Marginal Pinheiros e Juscelino Kubitschek, sofria freqüentemente com as enchentes provocadas pelos córregos Uberaba e Uberabinha, hoje canalizados, e passava por um processo de transformação intenso, no qual suas velhas chácaras davam lugar a prédios sofisticados e a faculdades, e as pequenas indústrias e oficinas que ocupavam sua parte mais baixa se transformavam em mega casas de shows e eventos. A transformação rápida e intensa deu lugar a tudo, da modernidade à decadência, da imundície à sofisticação.
No início de 2003, com uma câmera digital Sony DSC-F717, iniciei um trabalho constante, pesquisando inúmeras maneiras de fotografar e diversos temas. A versatilidade da câmera, a lente “zoom-zeiss” e a possibilidade de ver o resultado instantaneamente transformaram esse período meio caótico, de aprendizado, em uma riquíssima introdução do meu “olhar que vê” no universo da fotografia digital.
Pouco depois, no início de 2004, comecei a caminhar pela Vila Olímpia com a câmera na mão, com a intenção de fotografar os edifícios comerciais recém-construídos na parte “nobre” do bairro, mas acabei mergulhando justamente nas áreas mais antigas e degradadas, nos detalhes, ruas, calçadas, muros, tapumes, casas, portões, beirais e janelas, e os resultados me deixaram excitado e gratificado, pois meu olhar havia encontrado um foco extremamente claro e fértil.
Desde então, nos fins de semana, por volta das onze horas, de preferência com sol alto e céu azul, saio andando. Minhas caminhadas duram entre uma e duas horas; cada dia faço um roteiro diferente, e é interessante como, mesmo passando várias vezes por um mesmo lugar ou determinada rua, sempre acabo descobrindo algo novo. Ao voltar para casa descarrego as fotos no meu Macintosh, seleciono as melhores, trato-as minimamente no Photoshop, as arquivo. E, agora reúno uma seleção delas neste livro.
Uma particularidade interessante deste trabalho são as conversas que acabo tendo com algum morador mais curioso ou ressabiado, ou com as crianças, que são bem mais acessíveis e pedem para ser fotografadas, ou até, como aconteceu uma vez, com a moradora de uma casa humilde que eu fotografava e que veio me perguntar se eu a estava observando pensando em seqüestrá-la!
Meu amigo Bruno Mortara também escreveu:
A fotografia de Fernando Stickel
“Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão aí diante de nós, aí só estão porque despertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz acolhida.” (Maurice Merleau-Ponty em O olho e o espírito, 1960)
O plano do devir que nos atinge é repercutido no corpo e pelo corpo do artista. Seu corpo funciona como uma janela nervosa indo de um lado ao outro, de cima a baixo, girando a cabeça, inclinando-se. A intersecção do plano da vida com o plano do olhar é o resultado do trabalho do artista.
Fernando Stickel nos apresenta suas imagens: resultado da conjunção do trabalho do músculo do olho, da consciência, da inconsciência e da imaginação, que selecionam o que ver, e do trabalho do músculo do dedo indicador direito, que decide o momento certo a ser selecionado – em detrimento de todos os outros. É nessa escolha que seu ser se funde nas imagens captadas. As imagens revelam muito daquele que seleciona e compõe, brinca e pinta recriando seu próprio mundo. É por isso que ao ver suas fotos sentimos alegria e curiosidade. Sentimos o olhar-criança do artista adulto-que-pensa-a-vida.
As imagens sentidas-escolhidas por Fernando Stickel fazem lembrar aquilo que Merleau-Ponty disse sobre a percepção: a seleção de alguns fragmentos do fluxo de fenómenos que nos atingem é já parte da obra do artista, seu visar. Sua sensibilidade, através de seu visar, seleciona ver isso e não aquilo, a todo momento. Isso reduz o fluxo de sensações a recortes particularizados da realidade – o mundo do artista. Ao clicar um fragmento desse seu mundo, Fernando Stickel nos revela aspectos das coisas que já estavam lá e não seriam percebidos sem o visar do artista. Essa revelação, resultado do processo de criação, é o que o artista tem de mais precioso e nos mostra sua maneira única de penetrar nos mistérios daquilo que aparentemente está visível para todos mas só alguns são capazes de perceber.
Com atitude provocadora, o artista foge da visão clássica de mundo – como cosmo, ordem ou totalidade. A partir de seu corpo, mergulhado no mundo, Fernando Stickel garimpa nos fragmentos da realidade o fio condutor para expressar suas percepções, emoções e valores.
Bruno Mortara