Meu avô Ernesto Diederichsen (1878-1949), industrial e empresário e minha avó Maria Elisa Arens Diederichsen (Lili) chegaram à cidade serrana de Campos do Jordão SP em 1936. Encantados com o cenário alpino, adquiriram grandes áreas de terra na região.
Construiram em área de cerca de 100 alqueires denominada “Fazenda Toriba” a “Casa Grande” destinada ao veraneio da família, inaugurada em 1941. Na sequência, associados ao genro Luiz Dumont Villares construíram o Hotel Toriba, inaugurado em 1943.
Até o comecinho dos anos 70 as famílias Stickel, Diederichsen e Villares passavam as férias de Julho na Casa Grande. A casa era imensa, tinha três alas, duas no térreo (Stickel e Diederichsen), e uma no piso superior (Villares). O quarto da Vovó Lili (1883-1973), a dona da casa, ficava em um “corner” da ala Stickel. Havia ainda a casa da portaria, no andar superior da casa do caseiro, o que significava no total cerca de 16 quartos e perto de 50 pessoas na casa na alta temporada de Julho, pois vários quartos eram guarnecidos de dois beliches. Logo na entrada, sobre o gramado, ficava um lindo chorão, ao seu lado o telhadinho do sino, seu toque chamava para as refeições.
No total, a Fazenda Toriba englobava duas portarias (Toriba e Umuarama), dois chalés, a Casa Grande, duas ou três casas de colonos, a garagem do trator, a casa do Fritz, o administrador, a cocheira ao lado do lago e a horta, cuidada pelo “Joãozinho da Horta”, que também era um artista “naif”, pintava sobre madeira. Inúmeras construções auxiliares se espalhavam pela área, caixas d’água, estufas, barragens, captação de águas e casa de bombas, etc…
Os dois chalés eram ocupados, um pela família Lenz Cesar, e o outro alugado à família Van Langendonck. A portaria de Umuarama era tradicionalmente alugada para a família Oliveira.
As crianças se auto-definiam em grupos pelas idades como “pequenos, 8-9″, “médios, 10-11″ e “grandes, 13-14″, nesta escala um ou dois anos de diferença faziam a separação dos grupos. O grupo dos pequenos adorava fazer cabana dentro de casa, prendiam colchas e lençóis trazidos pelas mães com pregadores no espaldar das cadeiras, e se instalavam confortavelmente sobre almofadas.
Eu, meu amigo Klaus, meu primo Bernardo e a os irmãos mais velhos da família Oliveira, Mauricio, Marcelo e Marcos eram os “grandes”, e esta turminha não se cansava de aprontar, tendo certa feita se dedicado a quebrar TODOS os vidros da cocheira! Quando os pais souberam da façanha aplicaram uma das maiores broncas de que tenho memória, e vários castigos…
A rotina diária incluia sair a cavalo logo cedo, passeios os mais diversos, até a hora do almoço, depois do almoço trabalhar nas “estradinhas”, construção coletiva de estradas, grutas, pontes, escavadas em um barranco perto da Casa Grande, depois “zonear” no Hotel Toriba, onde os netos de Dona Lili, minha avó, podiam fazer tudo, inclusive assaltar a confeitaria…
Á noite, banho, pijama, “robe-de-chambre” e chinelos de lã com sola lisa de couro, que nos incentivava a derrapar no piso de cerâmica vermelha, em seguida jantar e jogos perto da lareira. Os mais safados costumavam assaltar a despensa, recheada de latas de biscoito e leite condensado. O acesso sempre trancado era driblado por uma passagem secreta através da lavanderia…
Vez por outra visitávamos o Ibaté, casa do meu tio Luiz Dumont Villares, e o programa era sempre nadar na piscina gelada e o escorregador de alumínio!
A Casa Grande tinha um único telefone, alojado em uma cabine anexa ao lavabo, as ligações muito difíceis eram através da telefonista. Do lado de fora, o pavilhão do ping-pong, construido em “logs”. Na entrada, do lado direito do portão principal ficava uma área coberta que abrigava uma dúzia de cavalos.
Durante as férias de Julho os pais chegavam de São Paulo às sextas-feiras, para grande alegria de todos, carregados de revistas, guloseimas, etc… Nas manhãs de sábado e domingo meu tio Ernesto montava as caixas de som nas janelas da sala, direcionadas para o páteo externo, e tocava música clássica, Dave Brubeck e outras preciosidades. Ficava todo mundo por ali curtindo o som, lendo, tomando um sol ou simplesmente ouvindo o vento nas árvores.
Vez por outra a Casa Grande recebia a visita de Frei Orestes Girardi, baixinho, magérrimo e corcunda, o Frei era uma importante liderança local, sempre batalhando pelos pobres. Talvez tenha sido o meu primeiro contato com o Terceiro Setor…
O cavalo Winnetou da Vovó Lili morreu ao escorregar em uma grota ao lado da Casa Grande, ao resgatar o corpo do animal descobriu-se uma fonte de água pura e cristalina, que a partir deste momento passou a ser chamada de Fonte Winnetou, na qual Vovó Lili bebia água todos os dias!
Inevitavelmente, a cada mês de Julho, era construida uma cabana no meio do mato. Todos participavam, e carregavam martelos, pregos, serrote, machadinhas, facões, etc… Óbviamente um ou outro era vítima de tantos objetos perfuro-cortantes, e as diligentes mães tinham que se desdobrar como enfermeiras, e levar alguém para a cidade dar pontos…
No lago haviam dois ou três caiaques de lona, e sempre que eu me aventurava por aquelas bandas acabava por cair no lago e voltava molhado e enlameado para casa. Aliás, água, chuva, lama e sapos faziam parte integrante das férias, sair pelado na chuva era o máximo!
As aventuras com cavalo eram inúmeras, e os tombos também, ao meu primeiro cavalo dei o nome de Ferraz, o segundo foi o Carbono, tinha esse nome por sua cor gafite azulado, lindo! Os mais velhos faziam excursões a cavalo que duravam dois ou três dias, dormíamos em sleeping bags debaixo de um céu estúpidamente estrelado!
Um dos passeios recorrentes era a visita ao Matadouro Municipal, na serra velha, era o fascínio do horror, da morte, do sangue, a língua de fora e os olhos vidrados. Mas o pior eram os cheiros, porque ao lado existia um curtume, e aí é que a sinfonia sensorial pegava pesado!
As excursões à Pedra do Baú envolviam logística mais sofisticada, às vezes voltávamos pelo Acampamento Paiol Grande e São Bento do Sapucaí. Quem tinha medo ia só até o Bauzinho…
O capítulo dos automóveis era sério…
Com cerca de 13 anos eu queria guiar de qualquer jeito, e meu pai me ensinou a guiar em uma Rural Wyllis, com câmbio no chão. Nesta fase ele permitia que eu guiasse dentro dos limites da fazenda, o que significava intermináveis idas e vindas em uma pequena estrada de terra de cerca de 2 km.
Eu dirigia tudo o que me caisse nas mãos, principalmente uma camionete Ford 1951 cinza, caindo aos pedaços, um trator vermelho Case dos anos 40, de rodinhas juntas na frente, e o carro da minha avó Lili, um Ford Tudor V8 1955 branco.
À noite, eu e meu primo Bernardo sempre encontrávamos um jeito de roubar os carros, e aí saíamos para fora da fazenda, eu guiando o Ford Tudor e ele no Plymouth Belvedere 1959 do pai dele. Eram corridas entre Abernéssia e Capivari, sempre em alta velocidade, a mais de 100km/h. As avenidas eram totalmente desertas e geladas e eu lembro das luzes dos postes passando rápidamente contra o céu estrelado. Só não aconteceu um acidente nestas saídas noturnas porque a divina providência houve por bem nos poupar!
Muitas e muitas vezes todos se mobilizavam para ajudar no combate aos incêndios na mata, que eram comums na época de inverno. Muitos relacionamentos, namoros e até casamentos conteceram a partir das brincadeiras nas noites geladas, excursões ao Pico do Itapeva, festas em casas dos amigos, bailinhos no Hotel Toriba etc…
Bons tempos!!
A planta da casa.
Uma amiga me enviou estas fotos da casa construida por Floriano Pinheiro, publicadas na revista Acrópole Nº 72 de Abril 1944.
7 comentários
Christian Pruks
outubro 7th, 2016 at 17:10
Muito bacana essa história! Meu avô foi um dos que começou a ‘desbravar’ Campos ainda nas décadas de 30 e 40, e meus pais frequentavam desde crianças – e essas histórias soam muito como as que meus pais contavam. Pena que eu mesmo não vi essa Campos do Jordão, mas vi e tenho gravado na memória das décadas de 70 e 80 as quais, pelo menos em parte, não verei nunca mais. Obrigado pelas memórias! Campos antiga sempre foi e sempre será uma paixão…
bernardo ratto diederichsen — aqui tem coisa
julho 19th, 2017 at 10:44
[…] em Florianópolis. Ficam saudades dos tempos de infancia e adolescência, férias em família em Campos do Jordão, loucuras com carros, tratores, karts… Que o Ber faça boa viagem! A foto é de 2011 em […]
Aline
agosto 4th, 2018 at 22:58
Que legal! Estou prestes a mudar para a Montanha Encantada, e a que tenho buscado conhecer, principalmente, é a fascinante e antiga Campos… Nunca havia pensado em morar aí, mas como que por um chamado, fui conhecer, e então, ao primeiro olhar e pisar em sua terra preciosa, lançou em mim um feitiço a ponto de a escolhermos para ser o novo lar da minha família. Lendo seu texto pude viver um pouquinho aquela época, que cada vez mais, vem se tornando tão familiar…
Flávia Rudge Ramos
julho 6th, 2020 at 19:39
Prezado Fernando:
Apreciei muito o seu relato. Também tenho história em Campos do Jordão, pois meu avô construiu o Hotel Vila Inglesa e nós moramos lá por alguns anos.
Estou escrevendo sobre a arquitetura em Campos do Jordão para um livro e procurei por você na sua fundação. Gostaria de ter mais informações sobre a casa do seu avô, como o autor do projeto e etc. Se você puder nos fornecer algumas imagens, seria ótimo.
Vejo que você defende a memória e a história da sua família, e pretendo dar a minha contribuição nesse sentido. Na minha dissertação de mestrado, falei muito sobre o hotel Toriba e os afrescos do Pennacchi.
Agradeço se puder entrar em contato pelos telefones 3885-5873 e 99127-6575. Meu e.mail: flaviarudgeramos@gmail.com
Atenciosamente,
Flávia Rudge Ramos
faleceu bernardo ratto diederichsen — aqui tem coisa
julho 29th, 2020 at 15:09
[…] em Florianópolis. Ficam saudades dos tempos de infancia e adolescência, férias em família em Campos do Jordão, loucuras com carros, tratores, karts… Que o Ber faça boa viagem! A foto é de 2011 em […]
maria diederichsen villares
outubro 8th, 2020 at 21:27
Querido primo Fernando
foi delicioso ler esse relato.
Nesta casa dei meus primeiros passos em 1941.Eu dormia no quarto com beliches altissimas;das meninas na ala Villares.Havia um imenso armário embutido com 2 portas no corredor com brinquedos que lá moravam.Ao chegar eu corria e abria as portas para ver os brinquedos.Me lembro até hoje do cheiro delicioso que sentia.
Durante 7 anos até Bernardo nascer fui a neta caçula.Comemorei varios aniversários com bolos feitos pelo confeiteiro do HotelToriba.Adolescente passei p o apartamento de cima sempre com alguma amiga.Inesqueciveis nossa fugidas p fumar embaixo da caixa d’agua. Com muita emoção ouvi o Requiem de Faure deitada na grama durante as tardes de musica com Ernesto.Aos 17 anos passei a frequentar nossa casa no Ibaté construida por meu pai. Após 63 anos ela continua firme e linda acolhendo a familia e amigos.
As lembranças da Casa Grande Toriba têm um lugar muito especial em minha história de vida.
fernando stickel
outubro 8th, 2020 at 21:35
Delícia de memória Maria!
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